Data: 11 de julho de 2015. Local: Avenida Paulista. Fato: Um corpo
coberto estendido entre duas floreiras, próximo da Estação Trianon do Metrô.
Eu vinha caminhando em direção ao local, quando esbarrei num homem, que
me pareceu assustado e apressado, diria que meio apavorado, talvez por ter
presenciado aquele corpo ensanguentado no chão.
Porém o que mais me chamou a atenção era o olhar de arrependimento e
mareados. O meu instinto e a experiência de dez anos na Polícia como
Papilocopista, me alertaram sobre a possibilidade de ser um suspeito, mas ele
se perdeu por entre a multidão e no mesmo momento em que o detetive-chefe me
chamou.
O corpo era de um jovem de aproximadamente vinte e cinco anos, cabelos
castanhos, estatura média, bem vestido e com seus acessórios intactos, relógio,
pulseira e corrente de ouro, não tinha sido uma tentativa de assalto.
Homicídio. O meu primeiro. Fiquei extasiado e meio que perdido, novamente o
detetive-chefe chamou a minha atenção para uma mancha de sangue um pouco
distante do corpo.
- Pode ser do assassino! Apontou para mim.
- Coloquei uma plaquinha indicando o local para que a Técnica pudesse
colher uma amostra.
Tirei a minha caderneta do bolso, meio surrada, mas bem prática. Anotei
algumas coisas que achava importante para o caso e fui para a delegacia, que
ficava próxima da cena do crime.
Fiz todos os procedimentos primários e comecei a levantar os dados
sobre o morto. Num pequeno saco plástico estavam seus pertences, uma carteira
com o RG, dois cartões de crédito, duzentos reais em dinheiro, algumas moedas,
um celular e um cartão de uma boate famosa em São Paulo.
Liguei o celular para tentar encontrar algum telefone que pudesse
contatar os familiares, se é que tinha. Para minha surpresa a tela principal
trazia um casal e uma pessoa bastante conhecida. Um susto e um arrepio. Era Bruna,
uma antiga paixão de escola e que havia perdido contato desde que entrara para
a polícia. Toquei o botão de contatos e procurei por ela na relação, lá estava,
acionei a chamada e uma voz respondeu do outro lado, com a mesma rouquidão dos
velhos tempos.
- Bruna? Disse nervoso e depois do sim, continuei. – Sou o detetive
Pedro do quarto distrito policial, infelizmente tenho más notícias.
- Eu já soube! Respondeu entre soluços e respirações congestionadas.
- Precisamos conversar. Pode ser na sua casa ou se preferir na
delegacia.
- Em casa. Disse inquisitiva.
O coração parecia querer escapar pela minha boca. Era o amor da minha
vida e depois dela não consegui manter nenhum relacionamento. Dez anos. Era
muito tempo sem se falar ou ter notícias dela.
A porta do seu apartamento se abriu e um nó na garganta e um ânsia de
vômito diante daquela mulher, que continuava linda e sensual. Para minha
surpresa ela não me reconheceu, esticou a mão em cumprimento e me fez entrar e
sentar no sofá. De repente percebi que ela me olhou por diversos ângulos.
- Pedrinho? Deixando escapar um leve sorriso e depois um abraço
apertado.
- Olá Bruna! Disse meio que gaguejando.
- Desculpe-me é que estou fragilizada com o acontecimento. Disse
voltando ao seu sofá.
Eu não queria que ela desgrudasse do meu corpo, tinha medo de perdê-la
novamente, mas voltei ao trabalho. Fiz as perguntas rotineiras e sentia um
certo nervosismo em cada resposta. Ela não me parecia muito sentida pela perda
e eu não queria entrar em detalhes íntimos. Ela ofereceu um café e eu aceitei.
Enquanto ela foi para a cozinha, dei uma volta pela pequena sala do
apartamento. Fotos espalhadas pelas paredes, estante com bons livros e um
porta-retrato numa escrivaninha com a foto dela e do namorado no que parecia
ser um sítio ou coisa parecida. Lembrei. Era dos pais dela, tinha ido uma vez
lá com a turma do colégio.
Ela voltou com a bandeja e fui me sentar novamente.
- Seus pais ainda moram no sítio?
- Não! Eles já faleceram. Nove anos.
- Meus sentimentos! Eu não sabia. Disse meio que envergonhado.
- Não foi nada! Nunca mais fui lá.
E a foto, pensei. Era bem atual, pensei em retrucar, mas preferi deixar
para lá, não tinha importância, talvez ela tivesse se confundido.
- Há quanto tempo você o conhecia?
- Há pouco tempo. Era um relacionamento casual.
A foto novamente.
- Sabe se ele tinha algum inimigo ou foi ameaçado atualmente?
- Não! Eu não tinha muita intimidade com a vida dele, saímos algumas
vezes e nada mais.
A marca no dedo anular direito dela mostrava uma marca profunda por ter
usada uma aliança e pelo branco do local fora muito tempo. Arrisquei.
- Você se casou ou ficou noiva nesse tempo. Disfarcei deixando escapar
um sorriso amigável.
- Não! Sempre tive relacionamentos casuais. Estudos e trabalho são a
minha necessidade de vida.
Queria ficar ali mais tempo, conversar sobre o nosso passado, tentar
seduzi-la novamente, como nos velhos tempos, porém meu instinto policial estava
me alertando que algo estava errado naquela mulher e no crime e resolvi voltar
para delegacia. Nos cumprimentamos como se fossemos estranhos e parti.
Já no carro, algo me dizia para esperar um pouco mais e pouco tempo
depois, que eu havia saído, ela também saiu e entrou num dos carros
estacionados próximo do prédio, a segui.
O caminho que tomara, levada para a rodovia e algum tempo depois uma
saída, uma estrada mal asfaltada e a porteira do sítio. Esperei que entrasse e
a segui, não muito próximo. A pé fui me esgueirando até a entrada da casa. Ela
já havia entrado. Pela janela pude ver que ela empurrava uma estante e abria
uma porta oculta. Entrei e ouvi um murmúrio, um lamento abafado e saquei minha
Glock e destravei. Entrei pela porta e desci uma pequena escada. O porão mal
iluminado e preso na parede um homem amordaçado e com várias marcas pelo corpo
nu. Bruna estava de costas e tinha na mão uma longa faca. Apontei a arma e
gritei para que jogasse a faca. Ela permaneceu de costas e foi abaixando a mão
que segurava a faca, vagarosamente até largá-la no chão. Então foi se virando.
Não havia medo naquele olhar e nem surpresa. Ficou fixada em mim e foi se
encaminhando ao meu encontro, mandei que parasse, ela atendeu. Corri os olhos
pelo local, era inacreditável vê-la entre instrumentos de tortura, sangue e
maldade, muita maldade. Fui pegar o celular.
- Espere, Pedrinho! Gritou.
Fiquei indeciso.
- Como pode fazer tal coisa com um ser humano?
Foi então que ela começou a confessar. Fora violentada várias vezes
pelo próprio pai naquele porão, quando ainda era uma menina. Contara para a mãe
que não acreditou e os estupros continuaram até que ela conseguiu coragem para
colocar um fim e matou os dois na garage do sítio, por monóxido de carbono do
escapamento do carro. Porém não fora suficiente para amenizar seu coração e sua
alma, então começou a marcar encontros com homens mais velhos e durante esse
encontro os dopava e os levava para o sítio, amarrava-os na parede e se
alimentava de toda dor que fosse possível antes que morressem.
- E o namorado? Qual era a relação dele nesses crimes?
- Era o meu cúmplice! Era ele quem me ajudava a trazer os homens para o
porão, depois me deixava sozinha.
- Você o matou?
- Sim, ele era um drogado e precisava de dinheiro e começou a me chantagear.
- Vou ter que levá-la, Bruna.
- Espere! Não posso ser presa. Eu não aguentaria, eu morreria. Se você
ainda me ama, fique comigo e eu te prometo as mais lindas noites de amor.
Implorou.
Um filme passou pela minha cabeça, a escola, a sala de aula, os
olhares, os desejos platônicos, os recreios, depois os cinemas e baladas e o
meu coração acelerou. Ninguém havia substituído aquela mulher na minha vida, eu
até aquele momento vivera de sonhos e devaneios noturnos. E agora, lá estava
ela me oferecendo tudo aquilo que sonhara.
- Não! Você não é aquela menina por quem me apaixonei e ainda estou
apaixonado.
Ela abaixou a cabeça e chorou ou fingiu, veio em minha direção e deixei
que me abraçasse, fiquei em comoção até que senti algo penetrar o lado das minhas
costas. Uma dor fina e a empurrei para trás. Os olhos dela estavam arregalados
e a face mudara, parecia que um demônio havia tomado seu corpo e a
transfigurou. Um grito de loucura e uma nova investida, dessa vez com a faca
segura pela mão e elevada para o alto em sinal de ataque.
Três tiros no peito e um na cabeça. Como havia aprendido na Academia de
Polícia.