quinta-feira, 9 de julho de 2015

Ato de Contrição - autor Kiko Zampieri

A pequena igreja de Jucamirim estava toda enfeitada para a festa junina, que aconteceria no próximo domingo, dia de Santo Antonio. Festa aguardada, principalmente, pelas moçoilas solteiras e com a idade um pouco avançada.
O Padre Rufino, como em todas as festas, procurava arrecadar prendas, doações em dinheiro e alimentos, uma parte iria para a festa e outra para o pequeno orfanato da cidade. Que era pequeno na estrutura, porém com alto nível de aquisições. E geralmente, alguns meses depois das festas, sempre aparecia uma novo integrante para o orfanato.
Como todas as manhãs, rezava a primeira missa, depois atendia os pecadores em seu confessionário, um pequeno armário com uma cortina grossa de cor vinho e uma abertura lateral por onde ouvia as confissões. Naquele dia fora diferente. Após o término das confissões rotineiras, um homem, que estava sentado na primeira fila dos bancos, chamou a atenção do velho padre. Era um estranho na comunidade, um jovem com pouco mais de vinte e cinco anos, mas como todos os anos, muitos viajantes apareciam pela cidade para participarem da festa, foi se aproximando e calmamente interpelou o desconhecido.
- Salve, meu filho!
- Olá padre. Disse levantando a cabeça e fixando o olhar no velho padre.
- Posso ajudá-lo?
- Preciso me confessar com urgência. Indagou o desconhecido.
- Claro, meu filho. Venha comigo até o confessionário. Orientou o padre.
O padre se acomodou na velha cadeira estofada dentro do cubículo e o desconhecido se ajoelhou na lateral.
- Quando foi a última vez que o senhor se confessou?
- Essa é a primeira vez, padre.
- Se está procurando arrependimento e perdão, veio ao lugar certo.
- Padre tirei a vida de cinco pessoas e queria confessar os meus crimes e encontrar a paz no meu coração. Disse o homem emocionado.
O padre ficou alguns segundos perplexo, mas era a sua função, ouvir a confissão e passar o ato de contrição e as orações necessárias para o perdão.
- Pode falar, meu filho.
O homem então começou a descrever seus crimes. Contou que o primeiro fora a dez anos atrás, um tal de Joaquinzinho, que trabalhava num sítio do Senhor Alberto, o matara na estrada que ia da cidade até o sítio. Dez facadas. O padre em silêncio e boquiaberto, lembrara do crime que havia abalado a comunidade. O homem continuou o relato sobre o segundo, um homem chamado Pedro Caculé, carroceiro da cidade, matara também a facadas, ele e o seu cavalo. Novamente o padre perdera a respiração.
O terceiro tinha sido Zé Manco, que trabalhava na farmácia do Senhor Gomes, também a facadas e deixado no meio da praça. Silêncio profundo e agora junto vinha uma angústia sufocante, ele se lembrava de todos aqueles assassinatos e todos não haviam sido solucionados e agora estava frente a frente com o assassino.
O homem continuou, o quarto tinha dado mais trabalho, pois era filho de um juiz e tivera que esperar muitos dias até que ficasse sozinho na casa. Morreu na cama com a barriga aberta. O quinto e último era o filho do fazendeiro Coronel Justino, esse morrera em outra cidade, pois havia fugido depois das mortes anteriores.
- Padre pode perdoar meus pecados?
- Reze o ato de contrição e um Pai-Nosso e dez Ave-Marias para cada morte e sua alma estará salva.
Antes que o homem saísse o padre fez uma última pergunta.
- Qual o motivo desse ódio, meu filho?
- Sou o filho da Rita do Brejo e fiz tudo por vingança. Vingá-la daqueles que abusaram e me geraram.
O padre quase teve um mal súbito. Lembrara da mulher, havia sido estuprada quando voltava da escola noturna e deixada na beira da estrada. Sobrevivera e fora embora da cidade sem nunca dizer os nomes dos estupradores.

O homem se ajoelhou na primeira fila e rezou os seis Pai-Nossos e as sessenta Ave-Marias, enquanto um filete pegajoso e vermelho escorria por baixo da cortina cor de vinho.

O Corpo - autor Will

Ele estava ali, caído, no meio da minha sala. E eu não sabia o que fazer com ele. Aquele corpo.
Ainda sangrava, mesmo depois de duas horas caído, sem vida. O que faço com ele? Perguntei-me.
Não era minha intenção mata-lo. Minha intenção não era fazer nada.
Mas ele veio aqui na minha casa. Estava armado. Olhos faiscando de ira. Disse que eu havia dado encima da mulher dele. Isso era verdade. Disse que eu a tinha levado para a cama. Também era verdade. Disse que eu não valia nada. Eu não neguei. De fato eu não valia nada. Até concordei quando ele disse que tipos como eu mereciam morrer, mas daí a deixa-lo sacar a aquela pistola e me matar sem tentar me defender, não, nem pensar.
Desde a hora em que ele havia entrado em minha casa, notei que ele estava armado. O tempo todo procurei manter uma pequena distância entre nós; enquanto ele se exaltava ao falar da mulher e de sua traição, eu antevia o que poderia acontecer. Quando ele sacou a arma eu entrei em luta corporal com ele. Ele era maior do que eu, mas o meu instinto de sobrevivência falou mais alto. Vieram-me forças não sei de onde. Nem me lembro ao certo como se deu o embate corporal. Só lembro que, no meio da coisa toda, a arma disparou e foi ele quem caiu com os olhos esbugalhados, gemendo e tremelicando.
O disparo abriu um enorme buraco no seu peito, por onde escorreu muito sangue.
Dez minutos depois e ele estava imóvel; morto.
O que faço agora? Perguntei-me.
Não senti nada ao ver o corno morto. Nem pena, nem remorso nem nada. Saí com a mulher dele umas três ou quatro vezes. Ela era infeliz no matrimônio. A maioria das mulheres é. Elas se decepcionam com o casamento; porque casamento é uma merda. Os homens não ficam decepcionados. Eles ficam apenas putos. Eles sabem que casamento é aquilo ali mesmo. Por isso procuram adiar ao máximo esse momento, o de casarem. Por isso todo mundo arruma amante. Por isso todo mundo leva chifre.
O morto estragou meu tapete. Teria que queimá-lo. Não era persa; não tenho dinheiro para comprar tapete persa. Mas era um tapete bonito.
O morto não era tão feio; era alto, um metro e oitenta; devia ter uns cem quilos talvez. Era um homem honesto, até ganhava um bom dinheiro. Mas também era um merda. Pessoas traem porque querem; o ser humano é movido a emoção. Seja pulando de paraquedas ou metendo chifre no cônjuge.
Ninguém acha tão estranho pôr fogo num tapete. Não se pode dizer a mesma coisa de um corpo sendo incinerado. Não dava para queimá-lo; a fumaça preta e o fedor chamariam a atenção da vizinhança.
Cortá-lo em pedaços? Fiquei imaginando o trabalho que daria e a sujeira que resultaria. Teria que arrumar cutelo, serra, essas coisas. E depois como desovaria os pedaços? Em malas? Hoje em dia tem câmeras de segurança espalhadas por todo lado. Os vizinhos me veriam saindo arrastando as malas pesadas, depois voltando de mãos vazias. Logo suspeitariam. Já vi casos de mulheres que esquartejaram os maridos e foram pegas por essas imagens.
A mulher do morto era carente. A maioria das mulheres não é carente; mas finge que é. Porque gostam de justificativas para fazerem as coisas que fazem; como fofocar com as amigas, invejar as mulheres mais bonitas e, é claro, cornear os maridos.
Poderia enterrá-lo ali mesmo, na sala.
Daria um trabalhão. Imagina o tamanho do buraco que teria que cavar para dar conta de um corpo daquele tamanho?
Eu havia reformado toda a casa há menos de um ano. Troquei todo o piso; paguei uma fortuna pelo porcelanato 60x60. Seria um crime meter uma picareta naquele troço. Bem, assassinato também é crime; mesmo que seja culposo. Possivelmente eu não seria condenado. Ele foi até minha casa. Ele estava armado; premeditou o crime. Apenas me defendi. Legítima defesa.
Mas o fato de eu já ter uma passagem na polícia por furto não deixavam as coisas tão simples assim. Quando eu era mais novo, era mais fodido ainda, entrei num mercado e roubei uma barra de goiabada, uma de 250 gramas. Fui apanhado com a mão na botija, quer dizer, na goiabada; o segurança me deu uns sopapos; descontava no meu estômago o fato de ser um bosta que fazia a segurança de um mercado de bairro por uma mixaria. O gerente chamou a polícia. Na delegacia também apanhei um bocado, os policiais descontaram na minha cara e estômago o fato de serem mal pagos e fodidos tanto quanto o segurança do mercado. Fiquei uns dias encarcerado; depois fui levado para um porão e fui torturado durante dias até aceitar de bom grado assinar a confissão de uma meia dúzia de crimes leves; era a forma da secretaria de segurança de diminuir os índices de crimes não solucionados e impunes. Acabei ficando um ano e nove meses enjaulado. Saí da cadeia sem futuro e com uma pequena lista de passagens de crimes que não cometi. O morto era homem de bem; não acreditariam na minha versão, e mesmo se acreditassem, eu não me livraria de mais um tempo em cana. E eu preferia o inferno a voltar nem mesmo por cinco minutos para aquela cadeia.
Eu queria evitar a aporrinhação. E também a exposição de Lúcia, a mulher do morto. Era uma excelente criatura. Ela amava o marido; jamais o abandonaria. Mas estava infeliz. O que devia fazer, se conformar com a vida medíocre que levava? Ela sabia que o marido também a traía, nem por isso fez escândalo ou quis matar a amante dele.
Ela achou melhor apenas pagar na mesma moeda.
Já vi em alguns filmes que os porcos comem de tudo, até cadáveres. Era assim que a máfia se livrava de alguns inimigos ou delatores. Jogando os corpos para os porcos comerem.
Não conheço ninguém que cria porcos.
Se eu tivesse um freezer poderia cortá-lo em pedaços e congelá-los, me desfazendo deles aos poucos. Mas não tenho freezer.
Lúcia queria ter filhos. Parte da tristeza dela vinha de não ser mãe. Mulheres são loucas para ter filhos, é uma forma de refrear frustrações matrimoniais. Ter que aguentar só o marido não dá; quando parem, o marido passa a ocupar o lugar que merece, o segundo plano.
Lúcia queria bem mais do que apenas um casamento sem graça. É o que todo mundo quer.
Tudo mundo quer ocupar seus vazios.
Não sei quanto tempo demora para um corpo começar se decompor e a feder; mas sabia que não podia ficar perdendo tempo com aquele corpo ali, na sala da minha casa. Precisava me livrar dele.
À duras penas consegui arrastá-lo para o banheiro, só para evitar de ficar olhando para ele o tempo todo. Enrolei o tapete; era bonito o tapete; uma pena.
Dois dias antes do corno vir até minha casa, Lúcia me procurou e disse que não nos veríamos mais. Disse que gostou do tempo que passamos juntos, mas era hora de pormos um fim naquilo. Eu não disse nada, não havia o que dizer. Apenas concordei. Sabia que seria assim. É assim que gente adulta lida com esse tipo de situação. Na certa ela ficaria sossegada por mais uns seis meses, até ficar novamente com aquela sensação de que a vida era uma coisa vazia e sem sentido e arrumaria outro amante. O marido dela, o corno, agora morto, era um homem menos metafísico e mais convencional. Ele tinha uma amante há mais de dois anos, e ainda arrumava, ocasionalmente, uma mulher aqui e ali para o sexo; para ele a vida era bem satisfatória. Já eu não era casado nem tinha amante, apenas aproveitava as ocasiões favoráveis que pudessem aparecer, como a vontade de Lúcia de preencher seus vazios.
O jeito era esperar anoitecer, até meia-noite, uma da manhã e ir até o vizinho, o Jonas. Ele estava de férias e tinha viajado para Palmas, no Tocantins, para visitar os parentes da sua mulher que moram por lá.
Ele morava naquela casa ao lado da minha há mais trinta anos. Ele me deu as chaves e pediu para eu tomar conta enquanto ele passava uns vinte dias fora. Era uma casa velha, que fora do seu avô e que tinha o quintal de terra batida. Ali havia uma velha fossa, há meio metro abaixo do solo. A solução era abrir a fossa e jogar o corpo lá, ainda que aos pedaços.
Sentei no sofá e então lembrei que meia hora antes do corno bater na minha porta eu havia tomado meia garrafa de refrigerante, mais de um litro; e agora estava com a bexiga cheia, e por causa de tudo que aconteceu, também estava com vontade de evacuar. Mas agora tinha um morto no meu banheiro.
O aperto foi maior.
Entrei no banheiro, afastei o morto para o canto e sentei no vaso. Ele ficou de frente para mim, com os olhos abertos. Não conseguia me concentrar com o morto me olhando. Pensei em Lúcia. Maldito sejam os seus vazios.