Ele estava ali,
caído, no meio da minha sala. E eu não sabia o que fazer com ele. Aquele corpo.
Ainda sangrava,
mesmo depois de duas horas caído, sem vida. O que faço com ele? Perguntei-me.
Não era minha
intenção mata-lo. Minha intenção não era fazer nada.
Mas ele veio
aqui na minha casa. Estava armado. Olhos faiscando de ira. Disse que eu havia
dado encima da mulher dele. Isso era verdade. Disse que eu a tinha levado para
a cama. Também era verdade. Disse que eu não valia nada. Eu não neguei. De fato
eu não valia nada. Até concordei quando ele disse que tipos como eu mereciam
morrer, mas daí a deixa-lo sacar a aquela pistola e me matar sem tentar me
defender, não, nem pensar.
Desde a hora em que
ele havia entrado em minha casa, notei que ele estava armado. O tempo todo procurei
manter uma pequena distância entre nós; enquanto ele se exaltava ao falar da
mulher e de sua traição, eu antevia o que poderia acontecer. Quando ele sacou a
arma eu entrei em luta corporal com ele. Ele era maior do que eu, mas o meu instinto
de sobrevivência falou mais alto. Vieram-me forças não sei de onde. Nem me lembro
ao certo como se deu o embate corporal. Só lembro que, no meio da coisa toda, a
arma disparou e foi ele quem caiu com os olhos esbugalhados, gemendo e
tremelicando.
O disparo abriu
um enorme buraco no seu peito, por onde escorreu muito sangue.
Dez minutos depois
e ele estava imóvel; morto.
O que faço
agora? Perguntei-me.
Não senti nada
ao ver o corno morto. Nem pena, nem remorso nem nada. Saí com a mulher dele
umas três ou quatro vezes. Ela era infeliz no matrimônio. A maioria das mulheres
é. Elas se decepcionam com o casamento; porque casamento é uma merda. Os homens
não ficam decepcionados. Eles ficam apenas putos. Eles sabem que casamento é
aquilo ali mesmo. Por isso procuram adiar ao máximo esse momento, o de casarem.
Por isso todo mundo arruma amante. Por isso todo mundo leva chifre.
O morto estragou
meu tapete. Teria que queimá-lo. Não era persa; não tenho dinheiro para comprar
tapete persa. Mas era um tapete bonito.
O morto não era
tão feio; era alto, um metro e oitenta; devia ter uns cem quilos talvez. Era um
homem honesto, até ganhava um bom dinheiro. Mas também era um merda. Pessoas
traem porque querem; o ser humano é movido a emoção. Seja pulando de paraquedas
ou metendo chifre no cônjuge.
Ninguém acha tão
estranho pôr fogo num tapete. Não se pode dizer a mesma coisa de um corpo sendo
incinerado. Não dava para queimá-lo; a fumaça preta e o fedor chamariam a
atenção da vizinhança.
Cortá-lo em
pedaços? Fiquei imaginando o trabalho que daria e a sujeira que resultaria.
Teria que arrumar cutelo, serra, essas coisas. E depois como desovaria os
pedaços? Em malas? Hoje em dia tem câmeras de segurança espalhadas por todo
lado. Os vizinhos me veriam saindo arrastando as malas pesadas, depois voltando
de mãos vazias. Logo suspeitariam. Já vi casos de mulheres que esquartejaram os
maridos e foram pegas por essas imagens.
A mulher do
morto era carente. A maioria das mulheres não é carente; mas finge que é. Porque
gostam de justificativas para fazerem as coisas que fazem; como fofocar com as
amigas, invejar as mulheres mais bonitas e, é claro, cornear os maridos.
Poderia
enterrá-lo ali mesmo, na sala.
Daria um
trabalhão. Imagina o tamanho do buraco que teria que cavar para dar conta de um
corpo daquele tamanho?
Eu havia
reformado toda a casa há menos de um ano. Troquei todo o piso; paguei uma
fortuna pelo porcelanato 60x60. Seria um crime meter uma picareta naquele troço.
Bem, assassinato também é crime; mesmo que seja culposo. Possivelmente eu não
seria condenado. Ele foi até minha casa. Ele estava armado; premeditou o crime.
Apenas me defendi. Legítima defesa.
Mas o fato de eu
já ter uma passagem na polícia por furto não deixavam as coisas tão simples
assim. Quando eu era mais novo, era mais fodido ainda, entrei num mercado e
roubei uma barra de goiabada, uma de 250 gramas. Fui apanhado com a mão na
botija, quer dizer, na goiabada; o segurança me deu uns sopapos; descontava no
meu estômago o fato de ser um bosta que fazia a segurança de um mercado de
bairro por uma mixaria. O gerente chamou a polícia. Na delegacia também apanhei
um bocado, os policiais descontaram na minha cara e estômago o fato de serem
mal pagos e fodidos tanto quanto o segurança do mercado. Fiquei uns dias
encarcerado; depois fui levado para um porão e fui torturado durante dias até
aceitar de bom grado assinar a confissão de uma meia dúzia de crimes leves; era
a forma da secretaria de segurança de diminuir os índices de crimes não
solucionados e impunes. Acabei ficando um ano e nove meses enjaulado. Saí da
cadeia sem futuro e com uma pequena lista de passagens de crimes que não
cometi. O morto era homem de bem; não acreditariam na minha versão, e mesmo se
acreditassem, eu não me livraria de mais um tempo em cana. E eu preferia o inferno
a voltar nem mesmo por cinco minutos para aquela cadeia.
Eu queria evitar
a aporrinhação. E também a exposição de Lúcia, a mulher do morto. Era uma excelente
criatura. Ela amava o marido; jamais o abandonaria. Mas estava infeliz. O que
devia fazer, se conformar com a vida medíocre que levava? Ela sabia que o
marido também a traía, nem por isso fez escândalo ou quis matar a amante dele.
Ela achou melhor
apenas pagar na mesma moeda.
Já vi em alguns
filmes que os porcos comem de tudo, até cadáveres. Era assim que a máfia se
livrava de alguns inimigos ou delatores. Jogando os corpos para os porcos comerem.
Não conheço
ninguém que cria porcos.
Se eu tivesse um
freezer poderia cortá-lo em pedaços e congelá-los, me desfazendo deles aos
poucos. Mas não tenho freezer.
Lúcia queria ter
filhos. Parte da tristeza dela vinha de não ser mãe. Mulheres são loucas para
ter filhos, é uma forma de refrear frustrações matrimoniais. Ter que aguentar
só o marido não dá; quando parem, o marido passa a ocupar o lugar que merece, o
segundo plano.
Lúcia queria bem
mais do que apenas um casamento sem graça. É o que todo mundo quer.
Tudo mundo quer
ocupar seus vazios.
Não sei quanto
tempo demora para um corpo começar se decompor e a feder; mas sabia que não
podia ficar perdendo tempo com aquele corpo ali, na sala da minha casa. Precisava
me livrar dele.
À duras penas
consegui arrastá-lo para o banheiro, só para evitar de ficar olhando para ele o
tempo todo. Enrolei o tapete; era bonito o tapete; uma pena.
Dois dias antes
do corno vir até minha casa, Lúcia me procurou e disse que não nos veríamos
mais. Disse que gostou do tempo que passamos juntos, mas era hora de pormos um
fim naquilo. Eu não disse nada, não havia o que dizer. Apenas concordei. Sabia
que seria assim. É assim que gente adulta lida com esse tipo de situação. Na
certa ela ficaria sossegada por mais uns seis meses, até ficar novamente com
aquela sensação de que a vida era uma coisa vazia e sem sentido e arrumaria
outro amante. O marido dela, o corno, agora morto, era um homem menos
metafísico e mais convencional. Ele tinha uma amante há mais de dois anos, e
ainda arrumava, ocasionalmente, uma mulher aqui e ali para o sexo; para ele a
vida era bem satisfatória. Já eu não era casado nem tinha amante, apenas
aproveitava as ocasiões favoráveis que pudessem aparecer, como a vontade de
Lúcia de preencher seus vazios.
O jeito era
esperar anoitecer, até meia-noite, uma da manhã e ir até o vizinho, o Jonas. Ele
estava de férias e tinha viajado para Palmas, no Tocantins, para visitar os
parentes da sua mulher que moram por lá.
Ele morava naquela
casa ao lado da minha há mais trinta anos. Ele me deu as chaves e pediu para eu
tomar conta enquanto ele passava uns vinte dias fora. Era uma casa velha, que
fora do seu avô e que tinha o quintal de terra batida. Ali havia uma velha
fossa, há meio metro abaixo do solo. A solução era abrir a fossa e jogar o
corpo lá, ainda que aos pedaços.
Sentei no sofá e
então lembrei que meia hora antes do corno bater na minha porta eu havia tomado
meia garrafa de refrigerante, mais de um litro; e agora estava com a bexiga
cheia, e por causa de tudo que aconteceu, também estava com vontade de evacuar.
Mas agora tinha um morto no meu banheiro.
O aperto foi
maior.
Entrei no
banheiro, afastei o morto para o canto e sentei no vaso. Ele ficou de frente
para mim, com os olhos abertos. Não conseguia me concentrar com o morto me olhando.
Pensei em Lúcia. Maldito sejam os seus vazios.