quinta-feira, 8 de setembro de 2016

CRIME E PAIXÃO





Data: 11 de julho de 2015. Local: Avenida Paulista. Fato: Um corpo coberto estendido entre duas floreiras, próximo da Estação Trianon do Metrô.
Eu vinha caminhando em direção ao local, quando esbarrei num homem, que me pareceu assustado e apressado, diria que meio apavorado, talvez por ter presenciado aquele corpo ensanguentado no chão.  Porém o que mais me chamou a atenção era o olhar de arrependimento e mareados. O meu instinto e a experiência de dez anos na Polícia como Papilocopista, me alertaram sobre a possibilidade de ser um suspeito, mas ele se perdeu por entre a multidão e no mesmo momento em que o detetive-chefe me chamou.
O corpo era de um jovem de aproximadamente vinte e cinco anos, cabelos castanhos, estatura média, bem vestido e com seus acessórios intactos, relógio, pulseira e corrente de ouro, não tinha sido uma tentativa de assalto. Homicídio. O meu primeiro. Fiquei extasiado e meio que perdido, novamente o detetive-chefe chamou a minha atenção para uma mancha de sangue um pouco distante do corpo.

- Pode ser do assassino! Apontou para mim.
- Coloquei uma plaquinha indicando o local para que a Técnica pudesse colher uma amostra.

Tirei a minha caderneta do bolso, meio surrada, mas bem prática. Anotei algumas coisas que achava importante para o caso e fui para a delegacia, que ficava próxima da cena do crime.
Fiz todos os procedimentos primários e comecei a levantar os dados sobre o morto. Num pequeno saco plástico estavam seus pertences, uma carteira com o RG, dois cartões de crédito, duzentos reais em dinheiro, algumas moedas, um celular e um cartão de uma boate famosa em São Paulo.
Liguei o celular para tentar encontrar algum telefone que pudesse contatar os familiares, se é que tinha. Para minha surpresa a tela principal trazia um casal e uma pessoa bastante conhecida. Um susto e um arrepio. Era Bruna, uma antiga paixão de escola e que havia perdido contato desde que entrara para a polícia. Toquei o botão de contatos e procurei por ela na relação, lá estava, acionei a chamada e uma voz respondeu do outro lado, com a mesma rouquidão dos velhos tempos.

- Bruna? Disse nervoso e depois do sim, continuei. – Sou o detetive Pedro do quarto distrito policial, infelizmente tenho más notícias.
- Eu já soube! Respondeu entre soluços e respirações congestionadas.
- Precisamos conversar. Pode ser na sua casa ou se preferir na delegacia.
- Em casa. Disse inquisitiva.

O coração parecia querer escapar pela minha boca. Era o amor da minha vida e depois dela não consegui manter nenhum relacionamento. Dez anos. Era muito tempo sem se falar ou ter notícias dela.
A porta do seu apartamento se abriu e um nó na garganta e um ânsia de vômito diante daquela mulher, que continuava linda e sensual. Para minha surpresa ela não me reconheceu, esticou a mão em cumprimento e me fez entrar e sentar no sofá. De repente percebi que ela me olhou por diversos ângulos.

- Pedrinho? Deixando escapar um leve sorriso e depois um abraço apertado.
- Olá Bruna! Disse meio que gaguejando.
- Desculpe-me é que estou fragilizada com o acontecimento. Disse voltando ao seu sofá.

Eu não queria que ela desgrudasse do meu corpo, tinha medo de perdê-la novamente, mas voltei ao trabalho. Fiz as perguntas rotineiras e sentia um certo nervosismo em cada resposta. Ela não me parecia muito sentida pela perda e eu não queria entrar em detalhes íntimos. Ela ofereceu um café e eu aceitei. Enquanto ela foi para a cozinha, dei uma volta pela pequena sala do apartamento. Fotos espalhadas pelas paredes, estante com bons livros e um porta-retrato numa escrivaninha com a foto dela e do namorado no que parecia ser um sítio ou coisa parecida. Lembrei. Era dos pais dela, tinha ido uma vez lá com a turma do colégio.
Ela voltou com a bandeja e fui me sentar novamente.

- Seus pais ainda moram no sítio?
- Não! Eles já faleceram. Nove anos.
- Meus sentimentos! Eu não sabia. Disse meio que envergonhado.
- Não foi nada! Nunca mais fui lá.

E a foto, pensei. Era bem atual, pensei em retrucar, mas preferi deixar para lá, não tinha importância, talvez ela tivesse se confundido.

- Há quanto tempo você o conhecia?
- Há pouco tempo. Era um relacionamento casual.

A foto novamente.

- Sabe se ele tinha algum inimigo ou foi ameaçado atualmente?
- Não! Eu não tinha muita intimidade com a vida dele, saímos algumas vezes e nada mais.

A marca no dedo anular direito dela mostrava uma marca profunda por ter usada uma aliança e pelo branco do local fora muito tempo. Arrisquei.

- Você se casou ou ficou noiva nesse tempo. Disfarcei deixando escapar um sorriso amigável.
- Não! Sempre tive relacionamentos casuais. Estudos e trabalho são a minha necessidade de vida.

Queria ficar ali mais tempo, conversar sobre o nosso passado, tentar seduzi-la novamente, como nos velhos tempos, porém meu instinto policial estava me alertando que algo estava errado naquela mulher e no crime e resolvi voltar para delegacia. Nos cumprimentamos como se fossemos estranhos e parti.
Já no carro, algo me dizia para esperar um pouco mais e pouco tempo depois, que eu havia saído, ela também saiu e entrou num dos carros estacionados próximo do prédio, a segui.
O caminho que tomara, levada para a rodovia e algum tempo depois uma saída, uma estrada mal asfaltada e a porteira do sítio. Esperei que entrasse e a segui, não muito próximo. A pé fui me esgueirando até a entrada da casa. Ela já havia entrado. Pela janela pude ver que ela empurrava uma estante e abria uma porta oculta. Entrei e ouvi um murmúrio, um lamento abafado e saquei minha Glock e destravei. Entrei pela porta e desci uma pequena escada. O porão mal iluminado e preso na parede um homem amordaçado e com várias marcas pelo corpo nu. Bruna estava de costas e tinha na mão uma longa faca. Apontei a arma e gritei para que jogasse a faca. Ela permaneceu de costas e foi abaixando a mão que segurava a faca, vagarosamente até largá-la no chão. Então foi se virando. Não havia medo naquele olhar e nem surpresa. Ficou fixada em mim e foi se encaminhando ao meu encontro, mandei que parasse, ela atendeu. Corri os olhos pelo local, era inacreditável vê-la entre instrumentos de tortura, sangue e maldade, muita maldade. Fui pegar o celular.

- Espere, Pedrinho! Gritou.

Fiquei indeciso.

- Como pode fazer tal coisa com um ser humano?

Foi então que ela começou a confessar. Fora violentada várias vezes pelo próprio pai naquele porão, quando ainda era uma menina. Contara para a mãe que não acreditou e os estupros continuaram até que ela conseguiu coragem para colocar um fim e matou os dois na garage do sítio, por monóxido de carbono do escapamento do carro. Porém não fora suficiente para amenizar seu coração e sua alma, então começou a marcar encontros com homens mais velhos e durante esse encontro os dopava e os levava para o sítio, amarrava-os na parede e se alimentava de toda dor que fosse possível antes que morressem.

- E o namorado? Qual era a relação dele nesses crimes?
- Era o meu cúmplice! Era ele quem me ajudava a trazer os homens para o porão, depois me deixava sozinha.
-  Você o matou?
- Sim, ele era um drogado e precisava de dinheiro e começou a me chantagear.
- Vou ter que levá-la, Bruna.
- Espere! Não posso ser presa. Eu não aguentaria, eu morreria. Se você ainda me ama, fique comigo e eu te prometo as mais lindas noites de amor. Implorou.

Um filme passou pela minha cabeça, a escola, a sala de aula, os olhares, os desejos platônicos, os recreios, depois os cinemas e baladas e o meu coração acelerou. Ninguém havia substituído aquela mulher na minha vida, eu até aquele momento vivera de sonhos e devaneios noturnos. E agora, lá estava ela me oferecendo tudo aquilo que sonhara.

- Não! Você não é aquela menina por quem me apaixonei e ainda estou apaixonado.

Ela abaixou a cabeça e chorou ou fingiu, veio em minha direção e deixei que me abraçasse, fiquei em comoção até que senti algo penetrar o lado das minhas costas. Uma dor fina e a empurrei para trás. Os olhos dela estavam arregalados e a face mudara, parecia que um demônio havia tomado seu corpo e a transfigurou. Um grito de loucura e uma nova investida, dessa vez com a faca segura pela mão e elevada para o alto em sinal de ataque.
Três tiros no peito e um na cabeça. Como havia aprendido na Academia de Polícia.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

DÁLIA NEGRA (*) by Kiko Zampieri




Ele acabava de circular o dedo indicador no enfeite preso nos cabelos dela, redesenhando a flor negra. Uma Dália Negra. O óculos escuro escondia os olhos marejados. A mulher esquartejada sobre a grama do terreno era uma conhecida. Elizabeth, lembrou do nome. Quase haviam se tornados parentes, seu irmão mais velho era o noivo dela e se casariam quando ele voltasse da guerra, porém morrera num acidente na Índia, quando regressava.
Ele ainda tentou cuidar dela, contudo era uma garota difícil de se lidar, rebelde, independente e adorava festas e homens fardados. Agora encontrara o seu destino nas ruas daquela cidade. Não era uma prostituta, apenas alguém que queria se sentir viva, feliz, atraente e desejada, talvez pela perda do noivo ou pelo abandono da família. Deitada na grama de um terreno baldio, tronco partido ao meio, um corte que abria sua boca de orelha a orelha, deixando expostos seus dentes brancos e sem vida, além da retirada do mamilo direito, um pedaço da coxa e um buraco aberto um pouco acima das suas partes íntimas e os braços dispostos numa posição de dança de uma bailarina clássica,
Tom era um policial dedicado e nos seus dez anos de corporação, havia visto muitos corpos, principalmente de mulheres jovens e belas, porém aquela visão o deixava perturbado e na sua mente uma questão: Quem teria coragem de tanta maldade?
Um buraco no seu ventre parecia fazer a menção de que alguém quisera tirar algo de dentro dela, só com os resultados da perícia e que teria certeza. Começava ali a caça a um verdadeiro monstro, rezava para que não fosse um novo Jack, O estripador agora em Los Angeles.
Durante os seis meses que se seguiram, a impressa martelou os vários noticiários, criando um certo pânico entre os moradores daquela cidade. Apelidando o crime como Dália Negra. Tom havia investigado várias pistas, porém sem nenhum resultado. Tinha em seu coração o ímpeto de resolver aquele mistério e capturar o assassino de Elizabeth. A perícia indicou que o seu útero fora tirado cirurgicamente, além de todos os cortes e a maneira como o tronco fora serrado, indicavam que o assassino conhecia as técnicas de cirurgia. Um médico ou um instrumentista poderiam ter realizado tais procedimentos, então a investigação tomou outro rumo. Os médicos, enfermeiros e instrumentistas agora eram os alvos tanto da polícia como da imprensa.
O que ninguém sabia, somente Tom, era que Elizabeth adorava homens fardados, por isso resolveu fazer uma investigação solitária aos médicos da base em Los Angeles, contudo sabia que teria que ser cuidadoso, afinal o Exército americano havia vencido a Segunda Guerra Mundial e todos eram heróis.
Três suspeitos estavam em sua lista. MacDowell, 58 anos, chegara da Europa em dezembro de 1946 e ainda estava em tratamento psiquiátrico, devido aos momentos que passara no ataque a Normandia. Silvester, 26 anos, solteiro, morava na base e não havia nenhum registro de alguma saída no mês de janeiro de 1947 e finalmente Stevenson, casado, pai de três filhas, 35 anos, chamado em seu regimento como O Mão de Serra, devido as inúmeras amputações nos campos de batalha. Esse era o seu principal suspeito, agora teria que levantar as provas e condená-lo.
Não seria tão fácil, afinal recentemente, recebera uma condecoração das mãos do próprio presidente Harry S. Truman e um convite para dirigir o principal hospital de Los Angeles.
De posse da cópia do laudo da perícia, Tom lia e relia, tentando encontrar algo que pudesse associar ao médico. Nenhuma relação com o criminoso fora encontrada no corpo ou nos arredores do local do crime e nenhum sangue havia sido derramado no local. A morte dela havia sido em algum local ermo e particular e o corpo depois de limpo fora jogado naquele terreno baldio. Ele precisa encontrar o local o mais rápido possível.
Por várias vezes ele refez os passos de Elizabeth desde que saíra do bar até a esquina onde fora vista pela última vez. Nada. Conversor novamente com as amigas e os homens com quem ela havia saído alguma vez. Nada. Tinha que tomar uma decisão extrema, que talvez fizesse com que perdesse seu emprego na polícia, tinha que invadir o escritório do Dr. Silvester, na base do exército.
Escolheu uma noite para ir até a base e com a desculpa de falar com um dos soldados conseguiu entrar sem nenhum problema. Era uma sexta-feira e a base estava praticamente vazia, caminhou pelas pequenas ruas, sempre acompanhado por um ordenança até a caserna. Lá conversou com um soldado e pagou algumas bebidas, depois simulou uma queda e ganhou um pequeno corte na palma da mão esquerda. Foi levado para a enfermaria, onde um enfermeiro dava plantão, ouvindo o jogo de basebol. Contrariado se apressou em fazer um curativo, sem tirar os ouvidos do radialista. Tom simulou uma tontura e o enfermeiro o deitou em uma das macas, fechou a cortina e voltou para sua sala e ao jogo. Era sua chance. Tom se esgueirou da maca e silenciosamente foi até a sala do médico. A porta estava destrancada. Entrou, vasculhou as gavetas da mesa e do armário. Nada de suspeito. Na parede um quadro com o médico e dois amigos diante de uma cabana de pesca. Um local afastado, foi o seu primeiro pensamento e sem titubear tirou o quadro da parede e escondeu no paletó. Saiu sem problemas da base e foi direto para casa, precisava descobrir a localização daquela cabana.
Pela manhã, foi para a prefeitura em busca de localizações de ranchos e sítios a beira do Rio Los Angeles. Oito foi do que descobriu, mas nenhum em nome de Silvester ou de qualquer outro militar. Teria que checar “in loco”.
Só no final da tarde, depois de visitar quatro locais, encontrou o rancho da foto, nada havia sido alterado desde a data que fora tirada aquela foto. Caminhou até a varanda, olhou pela janela e bateu na porta. Sem respostas nas três vezes, estava vazia. Forçou a porta, estava trancada. Deu a volta até os fundos, forçou a porta e ela abriu. A noite estava chegando, então acendeu um dos lampiões e levantou acima de sua cabeça para enxergar o recinto. Era simples, estava numa pequena sala com uma mesa e algumas cadeiras, um sofá triplo e duas poltronas e uma escada que levava ao andar de cima. Subiu. Três quartos com camas de casal e armários de roupas, que estavam vazios. Desceu. Outra escada agora para um porão, encontrou uma porta trancada, forçou, forçou mais uma vez e com o pé acertou o lado da fechadura, fazendo-a se abrir.
O que a luz do lampião iluminou foi assombroso e repugnante. Aquilo parecia com as masmorras da Inquisição Espanhola. Aparelhos de torturas, chicotes, mesas com aberturas para que alguém pudesse examinar uma pessoa, mantendo-a com as pernas abertas, grilhões presos nas paredes e várias cadeiras, arrumadas como se fossem para uma plateia. Segurou a vontade de vomitar e prosseguiu sua investigação. Ao lado de um grande tonel de querosene, que deveria servir para acender a caldeira, havia outra porta, aberta dessa vez, parecia mais uma sala de emergência de um hospital, com vários tubos de oxigênio e outros gases, diferente apenas as fotos nas paredes. Havia meninas, moças e até mulheres balzaquianas, deitadas na maca, sendo estripadas de várias maneiras e no final da galeria estava Elizabeth, nua, com o rosto já aberto e o Dr. Silvester segurando um órgão que havia sido tirado dela, pelo mesmo buraco no abdômen, que vira no corpo dela e entre os dedos da outra mão algo que parecia uma pequenino animal, um filhote de rato, não, era um feto humano, não conseguiu segurar mais e vomitou numa pia ao lado.  Lavou o rosto e voltou para cima, precisava trazer a perícia e os policiais, descobrira o assassino e o local do crime
Subiu as escadas até a sala, não percebeu o vulto encostado na porta de entrada, mas ouviu o clique do gatilho e se atirou no chão, porém não evitou que a bala se alojasse no seu estômago. O lampião caiu sobre o sofá iniciando um pequeno incêndio. Tom foi se afastando das chamas e sacando do seu revólver, atirou três vezes em direção da porta e correu agachado até a porta dos fundos. Outros dois tiros vieram de trás da mesa virada, atingindo a janela e em outro lampião, fazendo o querosene cair sobre Tom. Deu mais um tiro e tentou abrir a porta, recebeu outro nas costas. Virou e viu o vulto mais próximo, atirou e viu o chapéu sair da cabeça dele junto com parte da cabeça. O fogo começou a se espalhar e antes que Tom conseguisse alcançar a maçaneta, sua roupa se incendiou, tentou se levantar, porém estava sem forças e foi deixando o corpo, já sendo devorado pelas chamas, se acomodar no chão, ainda pode sentir a explosão no porão antes de cerrar seus olhos.
Quando os bombeiros e a polícia chegaram ao local, não havia muito o que fazer, a explosão e o fogo destruíram qualquer evidência que poderia existir naquele local, nenhum corpo, nenhuma foto que mostrasse o local e o assassino de Elizabeth, A Dália Negra.


(*) Baseado no Crime da Dália Negra, acontecido em Los Angeles em janeiro de 1947 e até hoje não descobriram nem o motivo e nem o assassino.