terça-feira, 22 de setembro de 2015

O VAMPIRO DE LANCASTER - Autor Kiko Zampieri





O VAMPIRO DE LANCASTER

Minha cabeça parecia de um ressacado depois de horas bebendo. Tudo estava rodando, dei uma balançada na cabeça dentro daquele saco de pano preto para tentar recobrar os sentidos. Pelo gelado das minhas nádegas estava sentado num chão de porcelanato, as mãos atadas por uma corda de sisal, que passava por trás do que parecia ser um cano grosso de ferro. Pelo eco, era um depósito ou coisa parecida. Tinha que ter prestado mais atenção nos meus instintos, agora estava naquele lugar desconhecido e incapacitado para tomar qualquer atitude.
Eu precisava parar de ficar atendendo os amigos, principalmente quando fosse um caso de desaparecimento ou sequestro. Se eu quisesse viver perigosamente, teria continuado no exército ou teria entrado para o FBI, o meu status era para estar entre atrizes e atores, milionários, o sol da Califórnia, as praias, o mar e os bons restaurantes.
Desde que o corpo daquela garota fora encontrada presa numa das base da ponte sobre o Rio Susquehanna, próximo do condado de Lancaster na Pensilvânia, e com a jugular furada com dois pontos, a imprensa começou uma frenética corrida para informar aos seus leitores e telespectadores sobre a possibilidade da existência de uma seita de vampiros, pois além dos furos na garganta, ela havia sido literalmente esvaziada de todo o seu sangue. O FBI e a polícia estadual de Lancaster estavam crédulos no fato de que vários desaparecimentos de garotas pela região, tinham algum relacionamento com aquele corpo e começaram uma operação pente fino em lugares ermos e abandonados, igrejas abandonadas, construções a beira de toda a extensão do rio, porém só haviam encontrado drogas, pichações, latas e garrafas de bebidas vazias. Foram dois anos de exaustivos trabalhos e sempre o tal fato era lembrado pela imprensa sensacionalista e programas sobre crimes e fatos inexplicáveis.
Novamente, um amigo de meu pai, aliás como ele tinha amigos, me procurou e quando ele disse aquela frase maldita, “Preciso da sua ajuda, minha filha está desaparecida”, pronto, já me via envolvido em tiroteios, fuga, poeira, noites mal dormidas e sede, muita sede, como agora.
Não adiantava ter um lindo escritório, próximo da Beverly Hills, Ave, com uma sala de espera requintada, secretária sensual, se a maioria dos meus casos acabavam em lugares ermos e desertos, sujos e correndo perigo de morte. Agora não adiantava ficar me lamentando, precisava dar um jeito de me livrar das amarras e descobrir onde estava. A estrela no cinto, da parte de trás, era uma lâmina afiada, que aprendi na época do exército, deixar sempre a mão para uma emergência. Cuidadosamente puxei a estrela e com o polegar e indicador fui forçando a lâmina na corda de sisal.
Enquanto as autoridades se preocupavam com seriais killer, eu procurei pelas redondezas do rio, milionários que viviam reclusos e que morassem próximos a margem. Não foi muito difícil em encontrar dois suspeitos reclusos e milionários. Um deles tinha noventa anos, vegetava numa linda cama de mogno branco, mas o outro era o meu suspeito. Trinta anos, nunca saía da mansão e depois descobri que ele vivia mais no porão do que em qualquer outro local e o principal, uma saída para o rio escondida entre a vegetação fechada. Meus instintos vibravam, então resolvi investigar a fundo.
Cortei as cordas, arranquei o capuz e fui me levantando devagar, balancei as pernas para que a circulação voltasse e assim pudesse caminhar. Um galo na minha cabeça me fez recordar da noite passada.
Eu estava de tocaia e novamente a van branca, aquelas que se usam para entrega, entrou e logo em seguida saiu, como fizera os últimos dois dias. Resolvi segui-la. A parada final era em um depósito, meio afastado da rodovia, com três andares. A van entrou e aproveitei para entrar também, me esgueirando enquanto o portão automático ia se fechando. Como sempre a lei estava do lado do invadido e não do invasor, por isso precisava tomar muito cuidado para não ser notado ou descoberto, podia ser um tiro no escuro, mas algo me dizia que estava no caminho certo. Esgueirei pela parede que circundava o terreno até o estacionamento, onde estavam várias vans. Era uma empresa de equipamentos médicos. Do outro lado o motorista saltou da cabine e se dirigiu para o que parecia ser um escritório. Eu precisava ver a nota de entrega. Corri então por entre as vans até chegar na esquina do prédio, dali pude ver o motorista e um outro homem conversando e tomando café, abri a porta da van e peguei a prancheta. Um baque e acordei aqui nesse depósito.
Estava escuro e apenas um facho de luz podia ser visto do outro lado, fui seguindo encostado pelas paredes até lá. Era um hall. Outra porta. Trancada. Olhei pela pequena janela e pude ver um lindo jardim, a visão era bem rente o que mostrava que eu estava em algum porão. Mais adiante dois homens bem vestidos e armados, caminhavam de um lado para o outro. Guardas. Estava na mansão. A janela era muito pequena para passar e a porta de ferro devia estar travada pelo lado de fora. Só me restava fazer barulho e trazer alguém para verificar. Quebrei o vidro da janela com o sapato e deu certo. Um dos homens voltou-se e correu em minha direção. Encostei na parede ao lado da primeira porta e esperei. Um barulho de algo sendo destravado e o homem entrou, podia ver a sua sombra se aproximando da entrada do depósito. Segurei a lâmina entre os dedos médio e anular e esperei. Vi primeiro o cano da submetralhadora e depois a cabeça. Chutei o seu abdômen e cravei várias vezes a lâmina em seu pescoço. O rádio chamou. Peguei a arma e sai pela porta. O outro homem veio verificar e ao mesmo tempo alertou pelo rádio uma invasão. As luzes do jardim e dos muros se acenderam e ainda pude ouvir o latido de cães. Tinha que sair dali. Esperei o homem chegar até a porta e com a coronha da arma acertei sua nuca, empurrei o corpo para dentro e travei a porta. Os latidos foram aumentando e procurei uma maneira de sair dali. Uma varanda próxima e depois outra e fui dando volta pela mansão. Uma delas tinha a janela aberta e entrei, fechei e fui até a porta, coloquei o ouvido e nenhum som, abri devagar e olhei o corredor pela fresta, depois para o outro lado. Nada. De um lado uma escadaria para o primeiro andar e do outro para o porão. Mas eu não tinha visto nenhuma escada lá embaixo. Optei por seguir para o porão. No final da escadaria um corredor seguia para o lado inverso de onde eu estava. Iluminado por luzes de emergência e grandes tubos de ferro que corriam em toda a sua extensão na parte de cima. Torcia para ninguém aparecer. Parei junto a única porta por onde podia se ver uma luz clara vindo da fresta na parte de baixo. Encostei o ouvido e pude ouvir um som de máquinas. Abri vagarosamente. O coração acelerou e quase perdi o fôlego. No centro da sala três tubos enormes e transparentes guardavam três corpos suspensos, imersos em algum tipo de líquido grosso e também transparente. Em cada um dos tubos uma jovem presa pela cintura, nua, no pescoço uma espécie de coleira com dois tubos saindo pela parte de cima do tubo. O rosto estava encoberto por uma máscara e as mãos presas, como se estivessem crucificadas. Fui caminhando discretamente, sem perder o foco nos tubos que saiam das jovens, iam para uma máquina central, olhei e pude perceber que era o sangue delas que estavam sendo colocados em bolsas para transfusão. Comércio de sangue humano, era só o que faltava nesse mundo. Não sabia o que fazer, desligar os tubos e tentar salvar as jovens, chamar o FBI, matar todo mundo, sei lá, estava desorientado. Não sabia quantos homens armados haviam naquela mansão e pelo jeito não eram poucos. A melhor maneira era encontrar o patrão e fazer com que todos se entregassem. Abri uma outra porta e para minha surpresa o patrão estava ali, recebendo uma transfusão. Apenas uma enfermeira, que mais parecia um guarda-costas devido ao porte atlético e o coldre embaixo da sua axila. Mirei em sua cabeça e gritei, ela se virou já sacando, não deu tempo e cravei três balas em seu rosto. O homem levantou o rosto e quase atirei, porém ele deixou a cabeça cair sobre o travesseiro. Era um rosto deformado. Nunca tinha visto nada igual nem na guerra, era como se os ossos fossem desenvolvidos erroneamente. Batidas na porta e muita gritaria. Gritei para que se afastassem ou mataria o patrão. Cessaram. Então me aproximei do paciente e vi o tubo preso em seu braço e recebendo um fluxo de sangue. Por curiosidade fui verificar os seus dentes, eram normais. Suspirei de alívio, então peguei o celular que estava numa mesa próxima, havia sinal, liguei para o meu amigo no FBI e contei o que estava acontecendo e dei todas as coordenadas, só não percebi a tempo a mão do infeliz apertando um botão vermelho que ficava junto da cama. Um vapor começou a sair pelo teto, sem pestanejar ou esperar para descobrir o que era, corri para a outra sala e fechei a porta, era pesada e de ferro, vedei a fresta de baixo da porta com dois jalecos. Uma leve explosão encheu o recinto do outro lado e uma pequena nuvem de fumaça começou a passar pelos jalecos. Saí pela porta que dava para o corredor e a fechei. Atirei nas lâmpadas e fiquei agachado no fundo do corredor esperando pelos guardas. Dois apareceram no final iluminado da escadaria, deixei que se aproximassem e antes que a luz da lanterna me alcançasse, atire duas rajadas. Por vinte minutos fiquei ali agachado e ninguém mais apareceu, somente os federais.
Ainda dentro do carro do meu amigo federal, foi que soube de toda história. O homem sofria de uma doença degenerativa, chamada de Talessemia Major, muito rara e que obriga o portador a fazer inúmeras transfusões, além da deformidade óssea, principalmente a facial. Ele era portador do sangue O negativo, difícil de ser encontrado, por isso mantinha jovens em um estado vegetativo, dentro dos tubos recebiam alimentação, vitaminas e soros para se manterem vivas e produzirem, constantemente, o sangue necessário. Soube também que elas estavam sendo desligadas dos tubos e que sobreviveriam. A jovem encontrada presa na ponte havia tentado escapar, mas não resistira a ausência demasiada de sangue em seu corpo e se afogara.
Agora era só ter paciência, ser liberado e depois voltar ao meu escritório, afinal os louros eram sempre deles. Só torcia para não receber nenhum recado de algum amigo do meu pai.

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