O VAMPIRO DE LANCASTER
Minha cabeça parecia de um ressacado depois de horas bebendo. Tudo
estava rodando, dei uma balançada na cabeça dentro daquele saco de pano preto
para tentar recobrar os sentidos. Pelo gelado das minhas nádegas estava sentado
num chão de porcelanato, as mãos atadas por uma corda de sisal, que passava por
trás do que parecia ser um cano grosso de ferro. Pelo eco, era um depósito ou
coisa parecida. Tinha que ter prestado mais atenção nos meus instintos, agora
estava naquele lugar desconhecido e incapacitado para tomar qualquer atitude.
Eu precisava parar de ficar atendendo os amigos, principalmente quando
fosse um caso de desaparecimento ou sequestro. Se eu quisesse viver
perigosamente, teria continuado no exército ou teria entrado para o FBI, o meu
status era para estar entre atrizes e atores, milionários, o sol da Califórnia,
as praias, o mar e os bons restaurantes.
Desde que o corpo daquela garota fora encontrada presa numa das base da
ponte sobre o Rio Susquehanna, próximo do condado de Lancaster na Pensilvânia, e
com a jugular furada com dois pontos, a imprensa começou uma frenética corrida
para informar aos seus leitores e telespectadores sobre a possibilidade da
existência de uma seita de vampiros, pois além dos furos na garganta, ela havia
sido literalmente esvaziada de todo o seu sangue. O FBI e a polícia estadual de
Lancaster estavam crédulos no fato de que vários desaparecimentos de garotas
pela região, tinham algum relacionamento com aquele corpo e começaram uma
operação pente fino em lugares ermos e abandonados, igrejas abandonadas,
construções a beira de toda a extensão do rio, porém só haviam encontrado
drogas, pichações, latas e garrafas de bebidas vazias. Foram dois anos de
exaustivos trabalhos e sempre o tal fato era lembrado pela imprensa
sensacionalista e programas sobre crimes e fatos inexplicáveis.
Novamente, um amigo de meu pai, aliás como ele tinha amigos, me
procurou e quando ele disse aquela frase maldita, “Preciso da sua ajuda, minha
filha está desaparecida”, pronto, já me via envolvido em tiroteios, fuga,
poeira, noites mal dormidas e sede, muita sede, como agora.
Não adiantava ter um lindo escritório, próximo da Beverly Hills, Ave,
com uma sala de espera requintada, secretária sensual, se a maioria dos meus
casos acabavam em lugares ermos e desertos, sujos e correndo perigo de morte.
Agora não adiantava ficar me lamentando, precisava dar um jeito de me livrar
das amarras e descobrir onde estava. A estrela no cinto, da parte de trás, era
uma lâmina afiada, que aprendi na época do exército, deixar sempre a mão para
uma emergência. Cuidadosamente puxei a estrela e com o polegar e indicador fui
forçando a lâmina na corda de sisal.
Enquanto as autoridades se preocupavam com seriais killer, eu procurei
pelas redondezas do rio, milionários que viviam reclusos e que morassem
próximos a margem. Não foi muito difícil em encontrar dois suspeitos reclusos e
milionários. Um deles tinha noventa anos, vegetava numa linda cama de mogno
branco, mas o outro era o meu suspeito. Trinta anos, nunca saía da mansão e
depois descobri que ele vivia mais no porão do que em qualquer outro local e o
principal, uma saída para o rio escondida entre a vegetação fechada. Meus
instintos vibravam, então resolvi investigar a fundo.
Cortei as cordas, arranquei o capuz e fui me levantando devagar,
balancei as pernas para que a circulação voltasse e assim pudesse caminhar. Um
galo na minha cabeça me fez recordar da noite passada.
Eu estava de tocaia e novamente a van branca, aquelas que se usam para
entrega, entrou e logo em seguida saiu, como fizera os últimos dois dias.
Resolvi segui-la. A parada final era em um depósito, meio afastado da rodovia,
com três andares. A van entrou e aproveitei para entrar também, me esgueirando enquanto
o portão automático ia se fechando. Como sempre a lei estava do lado do
invadido e não do invasor, por isso precisava tomar muito cuidado para não ser
notado ou descoberto, podia ser um tiro no escuro, mas algo me dizia que estava
no caminho certo. Esgueirei pela parede que circundava o terreno até o
estacionamento, onde estavam várias vans. Era uma empresa de equipamentos médicos.
Do outro lado o motorista saltou da cabine e se dirigiu para o que parecia ser
um escritório. Eu precisava ver a nota de entrega. Corri então por entre as
vans até chegar na esquina do prédio, dali pude ver o motorista e um outro
homem conversando e tomando café, abri a porta da van e peguei a prancheta. Um
baque e acordei aqui nesse depósito.
Estava escuro e apenas um facho de luz podia ser visto do outro lado,
fui seguindo encostado pelas paredes até lá. Era um hall. Outra porta.
Trancada. Olhei pela pequena janela e pude ver um lindo jardim, a visão era bem
rente o que mostrava que eu estava em algum porão. Mais adiante dois homens bem
vestidos e armados, caminhavam de um lado para o outro. Guardas. Estava na
mansão. A janela era muito pequena para passar e a porta de ferro devia estar
travada pelo lado de fora. Só me restava fazer barulho e trazer alguém para
verificar. Quebrei o vidro da janela com o sapato e deu certo. Um dos homens
voltou-se e correu em minha direção. Encostei na parede ao lado da primeira
porta e esperei. Um barulho de algo sendo destravado e o homem entrou, podia
ver a sua sombra se aproximando da entrada do depósito. Segurei a lâmina entre
os dedos médio e anular e esperei. Vi primeiro o cano da submetralhadora e
depois a cabeça. Chutei o seu abdômen e cravei várias vezes a lâmina em seu
pescoço. O rádio chamou. Peguei a arma e sai pela porta. O outro homem veio
verificar e ao mesmo tempo alertou pelo rádio uma invasão. As luzes do jardim e
dos muros se acenderam e ainda pude ouvir o latido de cães. Tinha que sair
dali. Esperei o homem chegar até a porta e com a coronha da arma acertei sua
nuca, empurrei o corpo para dentro e travei a porta. Os latidos foram
aumentando e procurei uma maneira de sair dali. Uma varanda próxima e depois
outra e fui dando volta pela mansão. Uma delas tinha a janela aberta e entrei,
fechei e fui até a porta, coloquei o ouvido e nenhum som, abri devagar e olhei
o corredor pela fresta, depois para o outro lado. Nada. De um lado uma
escadaria para o primeiro andar e do outro para o porão. Mas eu não tinha visto
nenhuma escada lá embaixo. Optei por seguir para o porão. No final da escadaria
um corredor seguia para o lado inverso de onde eu estava. Iluminado por luzes
de emergência e grandes tubos de ferro que corriam em toda a sua extensão na
parte de cima. Torcia para ninguém aparecer. Parei junto a única porta por onde
podia se ver uma luz clara vindo da fresta na parte de baixo. Encostei o ouvido
e pude ouvir um som de máquinas. Abri vagarosamente. O coração acelerou e quase
perdi o fôlego. No centro da sala três tubos enormes e transparentes guardavam
três corpos suspensos, imersos em algum tipo de líquido grosso e também
transparente. Em cada um dos tubos uma jovem presa pela cintura, nua, no
pescoço uma espécie de coleira com dois tubos saindo pela parte de cima do
tubo. O rosto estava encoberto por uma máscara e as mãos presas, como se
estivessem crucificadas. Fui caminhando discretamente, sem perder o foco nos
tubos que saiam das jovens, iam para uma máquina central, olhei e pude perceber
que era o sangue delas que estavam sendo colocados em bolsas para transfusão.
Comércio de sangue humano, era só o que faltava nesse mundo. Não sabia o que
fazer, desligar os tubos e tentar salvar as jovens, chamar o FBI, matar todo
mundo, sei lá, estava desorientado. Não sabia quantos homens armados haviam
naquela mansão e pelo jeito não eram poucos. A melhor maneira era encontrar o
patrão e fazer com que todos se entregassem. Abri uma outra porta e para minha
surpresa o patrão estava ali, recebendo uma transfusão. Apenas uma enfermeira,
que mais parecia um guarda-costas devido ao porte atlético e o coldre embaixo
da sua axila. Mirei em sua cabeça e gritei, ela se virou já sacando, não deu
tempo e cravei três balas em seu rosto. O homem levantou o rosto e quase
atirei, porém ele deixou a cabeça cair sobre o travesseiro. Era um rosto
deformado. Nunca tinha visto nada igual nem na guerra, era como se os ossos
fossem desenvolvidos erroneamente. Batidas na porta e muita gritaria. Gritei
para que se afastassem ou mataria o patrão. Cessaram. Então me aproximei do
paciente e vi o tubo preso em seu braço e recebendo um fluxo de sangue. Por
curiosidade fui verificar os seus dentes, eram normais. Suspirei de alívio,
então peguei o celular que estava numa mesa próxima, havia sinal, liguei para o
meu amigo no FBI e contei o que estava acontecendo e dei todas as coordenadas,
só não percebi a tempo a mão do infeliz apertando um botão vermelho que ficava
junto da cama. Um vapor começou a sair pelo teto, sem pestanejar ou esperar
para descobrir o que era, corri para a outra sala e fechei a porta, era pesada
e de ferro, vedei a fresta de baixo da porta com dois jalecos. Uma leve
explosão encheu o recinto do outro lado e uma pequena nuvem de fumaça começou a
passar pelos jalecos. Saí pela porta que dava para o corredor e a fechei.
Atirei nas lâmpadas e fiquei agachado no fundo do corredor esperando pelos
guardas. Dois apareceram no final iluminado da escadaria, deixei que se
aproximassem e antes que a luz da lanterna me alcançasse, atire duas rajadas. Por
vinte minutos fiquei ali agachado e ninguém mais apareceu, somente os federais.
Ainda dentro do carro do meu amigo federal, foi que soube de toda
história. O homem sofria de uma doença degenerativa, chamada de Talessemia Major, muito rara e que
obriga o portador a fazer inúmeras transfusões, além da deformidade óssea,
principalmente a facial. Ele era portador do sangue O negativo, difícil de ser
encontrado, por isso mantinha jovens em um estado vegetativo, dentro dos tubos
recebiam alimentação, vitaminas e soros para se manterem vivas e produzirem,
constantemente, o sangue necessário. Soube também que elas estavam sendo
desligadas dos tubos e que sobreviveriam. A jovem encontrada presa na ponte
havia tentado escapar, mas não resistira a ausência demasiada de sangue em seu
corpo e se afogara.
Agora era só ter paciência, ser liberado e depois voltar ao meu
escritório, afinal os louros eram sempre deles. Só torcia para não receber
nenhum recado de algum amigo do meu pai.
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